4 de abril de 2007

Jurisprudência – Superior Tribunal de Justiça

EMENTA

Recurso especial. Direito civil. Anulação de cessão de direitos hereditários pleiteada por terceiro. Contagem do prazo decadencial. Termo inicial. – O termo inicial do prazo decadencial para terceiro/credor ajuizar ação objetivando a anulação de cessão de direitos hereditários deve coincidir com o momento em que este teve ou podia ter ciência inequívoca da existência do contrato a ser invalidado. – Na ausência de elementos que indiquem o momento efetivo do conhecimento pelo terceiro da celebração da cessão de direitos hereditários, a data do registro do negócio no Cartório Imobiliário deve ser considerada como termo inicial do prazo decadencial. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp nº 546.077 – SP – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 13.11.2006)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Ari Pargendler, por maioria, não conhecer do recurso especial. Votaram vencidos os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros e Carlos Alberto Menezes Direito. Os Srs. Ministros Ari Pargendler e Castro Filho votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, ocasionalmente, nesta assentada, o Sr. Ministro Castro Filho.

Brasília (DF), 02 de fevereiro de 2006 (data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI – Relatora.

RELATÓRIO

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Recurso especial interposto por JORGE WOLNEY ATALLA, com fundamento nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional.

Ação: de conhecimento ajuizada pelo recorrido, BANCO BND S/A – em liquidação extrajudicial – em desfavor do recorrente, objetivando a "declaração de ineficácia de cessão gratuita de direitos hereditários ", sob a alegação de ter ocorrido fraude contra credores.

Decisão interlocutória: rejeitou a preliminar argüida pelos recorrentes, considerando que o prazo decadencial para ajuizar a ação pauliana deve ser contado a partir do efetivo registro imobiliário da cessão dos direitos hereditários e não do dia em que foi celebrado o negócio jurídico, como defendiam os recorrentes.

Acórdão: negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrente, nos termos da ementa que se segue:

"AÇÃO PAULIANA – Prazo – Prescritibilidade ou caducidade – Ato jurídico consubstanciado por escritura de cessão gratuita de direitos hereditários envolvendo a transmissão de bens imóveis – Desfazimento fundado na argüição de fraude contra credores – Lapso temporal extintivo cuja fluência computa-se da transcrição, junto ao assento imobiliário competente, do ato de transferência da propriedade para efeito de gerar publicidade e eficácia ‘erga omnes’ em relação a terceiros – Prazo quadrienal estatuído pelo artigo 178, parágrafo 9º, inciso V, alínea ‘b’, inocorrente – Recurso desprovido" (fls. 250).

Embargos de declaração: rejeitados.

Recurso especial: alegou o recorrente, em síntese, violação aos arts. 178, § 9º, V, "b"; 1.572, 530, 533, 135 e 1.067 do CC/16, sustentando que, na hipótese, o termo inicial para contagem do prazo decadencial deve ser a data em que a cessão de direitos foi efetuada. Afirma ainda que a cessão de direitos hereditários não está sujeita a registro e que deu-se publicidade ao ato de transmissão por ter sido lavrada escritura pública em cartório do local do domicílio das partes e por ter sido requerido o inventário, ato público.

Às fls. 424/426, decisão admitindo o especial e às fls. 438/440, parecer do Ministério Público Federal, opinando pelo não provimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

RELATORA; MINISTRA NANCY ANDRIGHI

– Do termo inicial do prazo decadencial – arts. 178, § 9º, V, "b"; 1.572, 530, 533, 135 e 1.067 do CC/16

O cerne da controvérsia é definir o termo inicial do prazo decadencial para terceiro/credor ajuizar ação pauliana, objetivando a anulação de cessão de direitos hereditários avençada entre herdeiro e genitor paterno a título gratuito.

Não se discute que se aplica à ação pauliana o prazo decadencial de quatro anos estabelecido no art. 178, § 9º, V, "b" do CC/16. Entretanto, não obstante disposição legal expressa determinando que o prazo deve ser contado do dia em que se realizou o ato ou o contrato que se pretende anular, este Tribunal já definiu de forma diferente o termo a quo, quando se tratar de invalidação de alienação de bem imóvel.

Nesta situação – quando postulada anulação de venda de imóvel – o STJ vem entendendo que o termo inicial do prazo decadencial deve ser a data do registro do respectivo título aquisitivo no Cartório Imobiliário. Precedentes neste sentido: Resp 36065, da relatoria do e. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, pub. no DJ de 10.10.1994 e AgRgResp 410828, de minha relatoria, pub. no DJ de 04.11.2002.

Na hipótese sob julgamento, discute-se a invalidação de cessão gratuita de direitos hereditários, questão ainda não definida, especificamente, por este Tribunal.

Em conformidade com a classificação de bens apresentada no art. 44, III do CC/16 e repetida no art. 80, II do Novo Código Civil, os direitos hereditários são considerados, para efeitos legais, bens imóveis, o que já indica a possibilidade de aplicar o mesmo termo inicial estabelecido pela jurisprudência para contagem do prazo decadencial para pleitear anulação de venda de imóvel.

Razoável esta solução, principalmente quando se interpreta de forma sistemática o art. 178, § 9º, V, "b" do CC/16, como o fez Pontes de Miranda, em sua obra Tratado de Direito Privado, vol. 6. Confira-se:

"O legislador não prestou atenção a que as ações por erro, ou dolo, pertencem a figurantes do ato jurídico, pessoas que necessariamente o conheceram, razão para se contar o prazo desde a prática do ato jurídico. Quanto a atos jurídicos anuláveis por simulação ou por fraude contra credores, o terceiro pode não ter conhecido o vício do ato jurídico, por não ter conhecido o próprio ato jurídico. Ignoraria o vício e a existência da própria ação; seria absurdo que contra ele corresse o prazo prescricional sem que estivesse apto a propor a ação".

A decadência é causa extintiva de direito pelo seu não exercício no prazo estipulado pela lei, cujo termo inicial deve coincidir com o conhecimento do fato gerador do direito a ser pleiteado.

O art. 178, § 9º, V, "b" do CC/16 estabelece como termo inicial do prazo decadencial para requerer anulação de contrato por dolo, simulação ou fraude o dia em que se realizar o ato ou o contrato.

Contudo, este dispositivo deve ser interpretado de forma adequada para que não seja efetivada situação absurda, qual seja, início da contagem do prazo decadencial quando sequer era conhecido o direito a ser postulado.

O inciso V do referido artigo foi assim redigido:

"a ação de anular ou rescindir os contratos, para a qual se não tenha estabelecido menor prazo"

É possível, portanto, antever, pela utilização da expressão "se não tenha estabelecido menor prazo", que o termo inicial fixado pelo legislador deve ser observado apenas em relação aos contratantes, ou seja, quando um deles pretender anular ou rescindir o contrato celebrado, não se aplicando ao terceiro que não participou da avença e, por este motivo, não poderia convencionar previamente outro prazo decadencial.

Em outras palavras, se cedente ou cessionário pretendessem anular a cessão de direitos hereditários objeto da controvérsia, o prazo decadencial começaria a correr da data da celebração do negócio, considerando que neste instante os contratantes tomaram conhecimento do fato gerador do direito a ser pleiteado.

Por outro lado, em relação ao terceiro/credor, o dies a quo deve coincidir com o momento em que este teve ou podia ter ciência inequívoca da existência do contrato a ser invalidado.

Na hipótese sob julgamento, como não há elementos que indiquem o momento efetivo do conhecimento pelo recorrido da celebração do negócio, deve ser considerado, por presunção, que, com o registro da cessão no Cartório Imobiliário, foi dada ciência do contrato ao terceiro/credor, devendo, portanto, ser contado, a partir desse momento, o prazo decadencial para o recorrido ajuizar a ação pauliana em exame.

Quanto à alegação dos recorrentes de ser inviável o registro da cessão de direitos hereditários, de fato, enquanto não ultimada a partilha, o referido negócio não poderia ser levado a registro, pois só no momento da partilha é que se determina e especifica o quinhão de cada herdeiro e, automaticamente, o objeto da cessão.

Enquanto não houver partilha dos bens, o cessionário detém apenas direito expectativo, que só irá se concretizar efetivamente após a especificação do quinhão destinado ao herdeiro cedente.

Dessa forma, seria possível cogitar que, antes da partilha e, conseqüentemente, antes do registro da cessão de direitos hereditários, o credor do cedente, no caso, o banco recorrido, sequer teria interesse de agir, pois, haveria somente possibilidade de lesão a seu direito de crédito, considerando que o passivo do falecido poderia ser maior do que o ativo e não restar bem algum ao herdeiro cedente.

Como fundamento complementar, ressalte-se que entender de outra forma, definindo a data da celebração do contrato como termo inicial do prazo decadencial para terceiro ajuizar ação pauliana, implica em facilitar a ocorrência da fraude contra credores e privilegiar a conduta fraudulenta, pois, estaríamos extinguindo o direito do credor em obter a anulação do contrato fraudulento sem que fosse oportunizado o conhecimento prévio da celebração do negócio, o que, em última análise, significaria inobservância ao princípio da boa-fé na celebração dos contratos, princípio que deve ser aplicado não só entre os contratantes, mas também na relação entre estes e terceiros que possam ser afetados pelo pacto.

Na hipótese em exame, foi reconhecido pelo i. juiz na decisão interlocutória de fls. 175 que o registro da cessão de direitos hereditários ocorreu em maio de 1999 e que a ação pauliana foi ajuizada pelo recorrido em agosto de 1999, não sendo, portanto, possível reconhecer a ocorrência da decadência.

Forte em tais razões, não conheço do recurso especial.

VOTO-VISTA

(vencido)

MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: O Banco ora recorrido promoveu ação declaratória de ineficácia de cessão de direitos hereditários. Em contestação, os réus afirmaram que a ação estava prescrita. É que a ação foi exercida doze anos depois de consumada a cessão, documentada em escritura pública.

De fato, a escritura de cessão gratuita foi lavrada em 19 de janeiro de 1987, enquanto a ação pauliana somente foi exercida em 7 de agosto de 2000.

Ao sanear o processo, o juiz afastou a decadência. Para tanto, adotou como termo inicial do prazo, a data em que se efetivou o registro imobiliário da escritura, ocorrido em maio de 1999. Essa decisão foi confirmada pelo acórdão ora recorrido.

O acórdão montou-se em linha de argumentação que resumo nestes pontos:

a) não há dúvida de que, entre a data em que foi lavrada a escritura de sessão e aquela da ação pauliana passaram-se treze anos;

b) é certo, também, que o Art. 178, § 9º, V do Código Beviláqua elege, como termo inicial do quadriênio prescricional, a data em que se realizou a cessão de direitos hereditários;

c) no caso, entretanto, a cessão, apesar de efetivada em escritura pública não era oponível a terceiros, porque a cessão de direitos hereditários somente opera erga omnes após registro imobiliário da adjudicação dos bens deixados pelo autor da herança;

d) por força do Art. 135 do Código Civil, o ato jurídico só opera em relação a terceiros, após o registro do documento a que foi reduzido, no registro público;

e) ora, o registro somente ocorreu em maio de 1999, ao passo que a ação foi exercida em agosto desse ano.

O recurso especial assenta-se nos permissivos a e c. Os recorrentes queixam-se de ofensa ao Art. 178 do Código Civil vigente na época. Como padrões de divergência, os recorrentes ofereceram os acórdãos formados no TJRS e no TAMG, a dizerem que a eficácia da cessão de direitos hereditários não admite registro imobiliário e que sua eficácia opera-se independentemente de tal registro.

A eminente Ministra relatora não conhece o recurso, porque:

1. de acordo com a classificação de bens efetuada pelo Art. 44, III do antigo Código Civil, os direitos hereditários inserem-se na categoria dos bens imóveis;

2. a interpretação sistemática do Art. 178, § 9º, V, b do Código Civil leva à convicção de que o prazo prescricional inicia-se, não no momento em que o ato é praticado, mas na oportunidade em que ele chega ao conhecimento do terceiro interessado em seu desfazimento;

3. a expressão “para o qual se não tenha estabelecido menor prazo”, contida no final do inciso V do Art. 178, § 9º, induz o entendimento de a prescrição opera somente entre os contratantes, não alcançando terceiros;

4. em relação a pessoas que integraram a relação contratual, o prazo inicia-se no momento em que – por presunção legal – tomaram conhecimento do pacto. Tal momento coincide com o registro imobiliário da cessão;

5. o argumento de que o registro da cessão de direitos hereditários não é suscetível de registro imobiliário em nada aproveita. É que, antes de se ultimar a partilha o herdeiro detém apenas “direito expectativo” cuja concretização somente acontece após a especificação do quinhão destinado ao herdeiro cedente. Antes de tal especificação, os credores do herdeiro não têm mera expectativa de direito à penhora do patrimônio adquirido pelo devedor, com a herança.

Pedi vista, porque, em pesquisa que realizei, enquanto se desenvolvia o julgamento, encontrei o acórdão desta Turma, no julgamento do REsp 502.873, em que esta Turma – conduzida pelo Ministro Pádua Ribeiro – decidiu, nestes termos:

“Civil. Cessão de Direitos Hereditários. Ausência de Escritura Pública. Instrumento particular registrado no Cartório de Títulos e Documentos. Ação ajuizada na vigência do Código Civil de 1916. I – O novo Código Civil, em seu Art. 1.793 é claro ao dispor que o direito à sucessão pode ser objeto de cessão "por escritura pública". Essa precisão, contudo, não existia no direito brasileiro, e a questão era controvertida na doutrina e jurisprudência. II – In casu, o documento foi levado a registro no Cartório competente, concedida, assim, a devida publicidade. Além disso, é anterior ao segundo, cuja validade não foi reconhecida pelas instâncias ordinárias, que concluíram pela má-fé dos cedentes e cessionários ora recorrentes. III – Contrato particular de cessão de direitos hereditários registrado em cartório cuja validade se reconhece ante a sua natureza obrigacional e, especialmente, tendo em vista as particularidades ocorridas no presente caso. IV – Recurso especial não conhecido.”

Este acórdão formou-se em 7 de abril deste ano.

Após meu pedido de vista, localizei outra decisão desta Turma, de 12/12/95, relativa ao REsp 46.726, lavrada pelo Ministro Cláudio Santos

“I. Somente os direitos dos herdeiros, com sucessão aberta, constituem-se em bem imóvel, por ficção, nos termos do Art. 44, III, do C.C., aí não incluídos a meação do cônjuge supérstite e cotas de sociedade comercial. II. A cessão de direitos, mesmo relativa a bem imóvel, tem natureza obrigacional e, quando registrada em cartório, hipótese dos autos, tem eficácia inclusive em relação a terceiros. III. Vedada a interpretação de cláusula contratual, para qualquer efeito, em recurso especial (Súmula 05-STJ). IV. Inexistência de nulidade absoluta arguível ex officio . V. O Juiz, atento ao princípio do seu livre convencimento, obriga-se a apreciar e a relevar apenas os fatos, alegações e peças instrutórias que tenham relevância para a causa, devendo desconsiderar todos aqueles impertinentes e sem qualquer valor probante. VI. O reexame aprofundado de provas não enseja a interposição de recurso especial (Súmula 07-STJ). VII. Recurso especial não conhecido.”

Não colaborei na formação destes precedentes, mas concordo com o que neles decidimos. Com efeito, embora os direitos hereditários mereçam tratamento homólogo àquele reservado aos bens imóveis, a cessão deles tem natureza obrigacional. Bem por isso, a Lei 6015/73 (Lei dos Registro Públicos) não a insere na relação exaustiva dos atos suscetíveis de registro imobiliário (Art. 167, I).

Ora, se o registro é impossível, não é lícito adotá-lo como condição suspensiva do prazo prescricional. Semelhante paradoxo – em flagrante atentado ao Art. 178, § 9º, V do vetusto Código Beviláqua – tornaria imprescritível a ação de desconstituição do contrato de cessão de direitos hereditários.

A tese de que a regra do § 9º opera estritamente no âmbito das partes contratantes e daqueles que conhecem o contrato deve ser acatada com extremo cuidado. Sua adoção indiscriminada reduziria o dispositivo legal à inutilidade. Não me preocupa a advertência de que a contagem do prazo, nos termos em que determina a Lei, abriria uma larga porta à fraude contra credores. Em se tratando de direitos hereditários, a preocupação diminuiu, porque com a herança transfere-se automaticamente o domínio (CC Art. 1.572).

Assim, ao credor é lícito fazer com que a penhora se efetive nos autos do inventário, incidindo sobre o quinhão indiviso do herdeiro.

Para mim, o acórdão recorrido maltratou o Art. 178 do venerável Código Civil. Peço vênia aos que me antecederam para, em homenagem à jurisprudência da Turma e a minha convicção, dar provimento ao recurso.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO:

O recorrente Jorge Wolney Atalla e outros na ação ordinária de declaração de ineficácia de cessão gratuita de direitos hereditários em fraude contra credores interpuseram agravo de instrumento contra decisão que rejeitou a decadência ao argumento de que não se discute que o termo inicial da pauliana seja o registro do ato que se quer anular, para aqueles atos sujeitos ao registro, mas, sim, o termo inicial daqueles atos que não se sujeitam ao registro, como é o caso da escritura de cessão de direitos hereditários que a ação pretende tornar ineficaz.

O Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao agravo. Segundo o acórdão, "conquanto o prazo quadrienal estatuído no artigo 178, parágrafo 9º, inciso V, alínea ‘b’, da lei substantiva civil, regule o termo inicial da data em que realizado o ato ou o contrato, não se pode olvidar que o pretendido desfazimento da estipulação

considerada fraudulenta pelo autor da demanda, o qual dela não participou, somente poderia ser conhecida a partir da publicidade apta a gerar eficácia ‘erga omnes’ em relação a terceiros, ou seja, quando da transcrição, no assento imobiliário competente, da adjudicação dos bens deixados pela genitora dos demandados, pessoas físicas que cederam graciosamente seus direitos ao viúvo meeiro (…)" (fl. 252), mencionando o magistério de De Plácido e Silva que reproduz. O Tribunal local considerou "que os efeitos da cessão, ato jurídico pelo qual o titular de direitos ou de créditos os transfere a outrem a título oneroso ou gratuito, não se operam, a respeito de terceiros, antes de transcrito no registro público (art. 135 do CCB)" (fI. 253). Depois de transcrever jurisprudência sobre o tema, conclui o Tribunal de origem que, no caso, o registro ocorreu no mês de maio de 1999, fato que não suscita impugnação específica nas razões do agravo, com o que o ajuizamento da ação em 17 de agosto seguinte afasta a decadência.

Os embargos de declaração foram rejeitados.

A eminente Relatora não conheceu do especial. Afirmou ser inquestionável que se aplique o prazo de quatro anos previsto no art. 178, V, "b", do Código Civil de 1916. Afirmou a Ministra Relatora que "não obstante disposição legal expressa determinando que o prazo deve ser contado do dia em que se realizou o ato ou o contrato que se pretende anular, este Tribunal já definiu de forma diferente o termo a quo, quando se tratar de alienação de bem imóvel" , invocando precedentes da Terceira e da Quarta Turmas. Ressaltou, contudo, que o caso dos autos trata da invalidação de cessão gratuita de direitos hereditários, o que ainda não foi julgado pela Corte. Para a Ministra Nancy Andrighi, como os direitos hereditários são considerados, para efeitos legais, bens imóveis, nos termos do Código Civil de 1916 e também no vigente, razoável que se entenda possível "aplicar o mesmo termo inicial estabelecido pela jurisprudência para contagem do prazo decadencial para pleitear anulação de venda de imóvel" . Invocando lição de Pontes de Miranda, a ilustre Relatora adverte que o dispositivo "deve ser interpretado de forma adequada para que não seja efetivada situação absurda, qual seja, início da contagem do prazo decadencial quando sequer era conhecido o direito a ser postulado" . Assim, o voto da Relatora consignou que o prazo somente poderia ter início no momento em que o terceiro, que não participou do ato ou do contrato "teve ou podia ter ciência inequívoca da existência do contrato a ser invalidado" . Por outro lado, asseverou a Ministra Nancy Andrighi que antes da partilha não pode haver o registro, mas assinalou que dessa forma "seria possível cogitar que, antes da partilha e, conseqüentemente, antes do registro da cessão de direitos hereditários, o credor do cedente, no caso, o banco recorrido, sequer teria interesse de agir, pois haveria somente possibilidade de lesão a seu direito de crédito, considerando que o passivo do falecido poderia ser maior do que o ativo e não restar bem algum ao herdeiro cedente" .

O Ministro Humberto Gomes de Barros dissentiu, porque "embora os direitos hereditários mereçam tratamento homólogo àquele reservado aos bens imóveis, a cessão deles tem natureza obrigacional. Bem por isso, a Lei 6015/73 (Lei dos Registros Públicos) não a insere na relação exaustiva dos atos suscetíveis de registro imobiliário (art. 167, I)". Assim, a divergência considerou que "se o registro é impossível, não é lícito adotá-lo como condição suspensiva do prazo prescricional.

Semelhante paradoxo – em flagrante atentado ao Art. 178, § 9°, V do vetusto Código Bevilaqua – tornaria imprescritível a ação de desconstituição do contrato de cessão de direitos hereditários" . Para o Ministro Gomes de Barros, não "preocupa a advertência de que a contagem do prazo, nos termos em que determina a Lei, abriria uma larga porta à fraude contra credores. Em se tratando de direitos hereditários, a preocupação diminuiu, porque com a herança transfere-se automaticamente o domínio (CC Art. 1.572). Assim, ao credor é lícito fazer com que a penhora se efetive nos autos do inventário, incidindo sobre o quinhão indiviso do herdeiro". Com esses fundamentos, conheceu e deu provimento ao especial diante da violação do dispositivo indicado. Sem dúvida, a jurisprudência da Corte tem adotado o entendimento no sentido de que o termo inicial da fluência, interpretando o disposto no art. 178, § 9º, V, "b", do Código Civil de 1916, "em se tratando de invalidação de bem imóvel postulada com base em alegação de fraude" é a data do registro do título aquisitivo no registro de imóveis (REsp nº 36.065/SP, Relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 10/10/94; REsp nº 14.797/SP, Relator o Ministro Barros Monteiro, DJ de 7/11/94; AgRgREsp nº 410.828/PR, Relatora a Ministra Nancy Andrighi, DJ de 4/11/02). Não menos certo é que esta Terceira Turma em duas oportunidades considerou que a cessão de direitos hereditários tem natureza obrigacional (REsp nº 502.873/MT, Relator o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, DJ de 2/5/05; REsp nº 46.726/SP, Relator o Ministro Cláudio Santos, DJ de 11/3/96).

O que se vai examinar, na minha compreensão, é a natureza da cessão de direitos hereditários para que se possa determinar o termo inicial do prazo de decadência previsto no art. 178, § 9º, V, "b", do Código Civil de 1916. Não há nenhum questionamento sobre a natureza da ação que é a pauliana.

Com todo respeito ao entendimento da eminente Relatora, não creio que se possa equiparar a cessão de direitos hereditários ao regime dos bens imóveis.

Vejamos.

Tenha-se presente que esta ação destina-se a tornar ineficaz a cessão de direitos hereditários feita pelos filhos a seu pai, por escritura pública de 19/1/87, sendo os bens adjudicados ao cessionário por sentença de 12/2/87.

Ninguém discute, porque de conhecimento primário, que os direitos hereditários são transmitidos com a morte nos precisos termos do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Como ensinava Orlando Gomes, a abertura da sucessão "é efeito instantâneo da morte de alguém" (Sucessões, Forense, Rio, 12ª ed., atualizada por Mario Roberto Carvalho de Faria, 2004, pág. 13). E na esteira de Itabaiana de Oliveira os bens são comuns a todos os herdeiros e "será indivisível o seu direito quanto à posse e ao domínio, até se ultimar a partilha; porque o herdeiro tem direito, não a esta ou àquela coisa particular da herança, mas à sua totalidade, in tot et in quolibet parte, não podendo, por isso, vender ou hipotecar parte determinada da herança, mas, apenas, o seu direito à comunhão, isto é, a sua parte ideal" (Tratado de Direito das Sucessões, Liv. Freitas Bastos, Rio, 5ª ed., atualizada pelos Desembargadores Décio Itabaiana, Paulo Dourado de Gusmão e Paulo Pinto, 1986, pág. 35).

Com a força da totalidade da herança, os herdeiros investem-se na sucessão e daí passam a dispor dos direitos hereditários. Isso autoriza que os herdeiros possam transferir os direitos adquiridos em decorrência da sucessão seja a título oneroso seja a título gratuito, passando o cessionário a ocupar o lugar dos herdeiros na sucessão do de cujus. E o meio pelo qual assim podem fazer é a cessão dos direitos hereditários.

Mostra Arnaldo Rizzardo que na cessão dos direitos hereditários "há a alienação, pela qual os direitos hereditários passam para outra pessoa, que pode integrar a relação de herdeiros ou ser um estranho" (Sucessões, Forense, Rio, 2ª ed., 2005, pág. 100). Com isso, o cessionário nos termos do Código Civil anterior incidente no caso, art. 1.772, pode requerer a partilha.

O meio pelo qual se faz essa transferência é a escritura pública. No momento em que aperfeiçoada a escritura pública de cessão de direitos hereditários, o patrimônio dos herdeiros passa ao cessionário, que se sub-roga inteiramente naqueles direitos que antes pertenciam àqueles. Pergunta-se, então, esse instrumento de cessão é registrável?

Parece-me que não é. De fato, não se pode registrar porque a transferência não se dá com relação a um bem determinável, mas ao quinhão transferido. A individuação somente nasce com a partilha, e por esse motivo mesmo é que não se admite a cessão de direitos após efetuada esta. Não há cessão de coisa, mas, sim, de direitos (Arnaldo Rizzardo, cit., pág. 105). Como ensina Orlando Gomes, a "cessão de herança tem como objeto o nomem hereditarium , isto é, um patrimônio sem a especificação dos bens e das dívidas" (cit., pág. 267), já na senda aberta por Itabaiana de Oliveira (cit., pág. 62). Ademais, mostra que a "escritura não está sujeita a transcrição no registro imobiliário porque só com a partilha se especificam os bens" (cit., pág. 270).

Não se pense que a regra do art. 44, III, do Código Civil tem o condão de alterar esse cenário. O fato é que define o dispositivo que para os efeitos legais consideram-se imóveis o direito à sucessão aberta, o que não quer dizer que exista a obrigação de registro. Tanto Clovis como Carvalho Santos destacam que a sucessão abrange tanto os direitos reais como os pessoais, em uma universalidade patrimonial (Código Civil Brasileiro Interpretado, Liv. Freitas Bastos, 13ª ed., 1988, pág. 24; Clovis Bevilaqua, Código Civil Comentado, Liv. Francisco Alves, 12ª ed., 1959, atualizada por Achilles Bevilaqua e Isaias Bevilaqua, pág. 1959). Todavia, Carvalho Santos assinala que "embora considerada imóvel, a sua transmissão não se opera pelo registro por não se tratar de imóveis por natureza ou acessão" (pág. 24). Indiscutível, portanto, que não há falar em registro.

Não se diga que a regra do art. 135 do Código Civil anterior alcançaria a escritura pública. Não, não alcança. O dispositivo destina-se ao instrumento particular.

Como mostra Carvalho Santos, trata o art. 135 do valor probante do documento particular e dos respectivos efeitos com relação a terceiros (cit., págs. 151 e 160).

Veja-se que o próprio art. 1.067 a que faz referência quando cuida da cessão distingue o instrumento público que não exige a formalidade do art. 135 do Código Civil anterior.

Balizada a questão da impropriedade do registro é de se indagar agora se comporta o art. 179, § 9º, V, "b", do Código Civil de 1916 a interpretação de que o prazo correria do registro.

Rogando mais uma vez respeitosa vênia à ilustre Relatora, entendo que não é possível tal interpretação.

Recapitulemos: trata-se de ação pauliana alcançando a fraude da cessão de direitos hereditários; a cessão de direitos hereditários foi formalizada por instrumento público; a cessão de direitos hereditários não comporta individuação de bens, alcançando o quinhão dos herdeiros; logo não é registrável. E mais: o dispositivo aplicável manda contar o prazo da data em que se realizar o ato ou o contrato; o ato é a cessão de direitos hereditários que não pode ser registrada; logo não há como contar o prazo da data do registro.

Por outro lado, não me parece que se deva dar relevo à circunstância de que o credor não teria interesse de agir antes da partilha, devendo-se contar em seu favor o prazo decadencial, no suporte de que haveria necessidade para tanto de seu conhecimento do ato, por presunção. Ora, não foi esse o objetivo da regra jurídica. O que se quis foi manter o sistema da impugnação no padrão do ato impugnado, não dependente, portanto, de uma interpretação construtiva para ampliar o prazo de decadência tirando-o do foco do dia em que se realizar o ato ou o contrato. Creio que essa interpretação colide diretamente com a disciplina legal então em vigor, não carecendo de nenhuma lacuna, capaz de ensejá-Ia.

O julgado, ao meu sentir, apoiando-se no art. 135 do Código Civil de 1916 e em doutrina respeitável, faz a distinção entre aqueles atos que tenham por objeto coisas móveis ou imóveis, esbarra no caso da cessão de direitos hereditários pelo só fato, como já relevado antes, de que não se transfere coisa, mas, sim, direitos, somente individuados com a partilha. Assim, a interpretação adotada, na minha compreensão, malfere a regra do art. 178, § 9°, V, "b", do Código Civil de 1916, ademais de conferir interpretação que não está nos limites do art. 135 também do Código Civil de 1916.

Com essas razões, acompanho o voto do eminente Ministro Humberto Gomes de Barros, conhecendo do especial e lhe dando provimento para acolher a decadência. Em conseqüência, extingo o processo, com julgamento do mérito, nos termos do art. 269, IV, do Código de Processo Civil. Custas e honorários de 10% sobre o valor atualizado da causa.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO FILHO: Sra. Ministra Presidente, a escritura lavrada em cartório, indiscutivelmente, trata de documento público, mas é de se observar que, em reforço às considerações de V. Exa., pode ser lavrada em qualquer tabelionato do País, e dificultaria muito ao interessado procurar, em todos os tabelionatos, a existência de uma escritura pública, que, claro, produz efeitos, tem a sua eficácia, mas apenas entre o outorgante e o outorgado, ou seja, em relação a quem vende ou a quem cede, se a cessão é onerosa, em relação ao cessionário ou ao adquirente. O registro não, em casos que tais, somente poderá ser feito no cartório do registro imobiliário local, da sede do imóvel. Por isso, a transmissão da propriedade do imóvel somente se altera após o registro. Aliás, é bom frisar, em reforço ao pensamento de V. Exa.: somente se opera transmissão com registro.

Em assim sendo, a escritura pública de venda ou de cessão de bens imóveis é um contrato que somente se aperfeiçoa, no sentido de transmitir a propriedade, com registro no cartório respectivo.

Então, em assim entendendo, em casos que tais, aplica, sim, o dispositivo do Código Civil, a partir do momento em que este contrato se aperfeiçoou, se completou com o registro, razão pela qual estou seguindo o voto de V. Exa., com a devida vênia.

Ministro CASTRO FILHO

VOTO-VISTA

EXMO. SR. MINISTRO ARI PARGENDLER:

1. Os autos dão conta de que, em razão do falecimento de Olga Izar Atalla, ocorrido em 21 de novembro de 1986, o viúvo, Jorge Atalla, requereu, em 20 de janeiro de 1987, a abertura do inventário dos respectivos bens.

O pedido foi instruído por escritura pública de cessão de direitos hereditários, realizada no dia anterior, 19 de janeiro de 1987, por meio da qual os quatro filhos do casal transferiram ao pai, a título gratuito, o que lhes cabia no espólio.

Concluído o inventário, os bens imóveis adjudicados foram aproveitados para constituir o capital social de J.A. Agropecuária e Comercial Ltda., mais tarde transformada em sociedade por ações, tendo sido doada aos netos a participação acionária de Jorge Atalla.

O posterior falecimento deste, em 17 de dezembro de 1988, deu causa à instauração do inventário de seus bens, “sem que do patrimônio constassem os imóveis adjudicados ao extinto no inventário de Olga Izar Atalla” (fl. 26).

Essa circunstância levou o Banco BMD S/A, em liquidação judicial, a requerer a sobrepartilha, e, em função de tal iniciativa, os filhos do de cujus, a 19 de maio de 1999, registraram no Ofício Imobiliário a escritura pública de conferência de bens ao capital social de J.A. Agropecuária e Comercial Ltda.

2. Ao Banco BMD S/A, em liquidação extrajudicial, pareceu que a cessão de direitos hereditários por meio da qual os filhos transferiram ao pai, Jorge Atalla, os bens que lhes pertenciam no espólio da mãe, Olga Izar Atalla, foi realizada com o propósito de fraudar credores, e, por isso, propôs contra Jorge Wolney Atalla e sua mulher, Marlene Leal de Souza Atalla, Jorge Rudney Atalla e sua mulher, Jacy Aparecida Maniero Atalla, Jorge Edney Atalla e sua mulher, Esmeralda Apparecida Moreno Atalla, e Jorge Sidney Atalla e sua mulher, Nádia Letaif Atalla, uma ação ordinária requerendo fosse declarada a ineficácia do indigitado negócio em relação a ele, autor da demanda (fls. 24/39, 1º vol.).

No despacho saneador, o MM. Juiz de Direito Dr. Márcio Antonio Boscaro rejeitou a preliminar de prescrição, ao fundamento de que o respectivo termo inicial “deve ser fixado quando do efetivo registro imobiliário da cessão de direitos que se pretende ver declarada ineficaz com o ajuizamento da presente ação” (fl. 174, 1º vol.).

A decisão foi atacada por agravo de instrumento, a que o tribunal a quo, Relator o Desembargador Júlio Vidal, negou provimento, destacando-se no acórdão o seguinte trecho:

“E conquanto o prazo quadrienal estatuído no artigo 178, § 9º, inciso V, alínea ‘b’, da lei substantiva civil regule o

termo inicial da data em que realizado o ato ou o contrato, não se pode olvidar que o pretendido desfazimento da estipulação considerada fraudulenta pelo autor da demanda, o qual dela não participou, somente poderia ser conhecida a partir da publicidade apta a gerar eficácia erga omnes em relação a terceiros, ou seja, quando da transcrição, no assento imobiliário competente, da adjudicação dos bens deixados pela genitora dos demandados, pessoas físicas que cederam graciosamente seus direitos hereditários ao viúvo meeiro” (fl. 252, 2º vol.).

3. Daí o presente recurso especial, instruído por parecer do Professor Eduardo Ribeiro (fls. 327/358, 3º vol.), que se somou aos pareceres já existentes nos autos, da lavra dos Professores Humberto Theodoro Júnior (fls. 58/80, 1º vol.) e Luiz Carlos de Azevedo (fls. 140/155, 1º vol.).

A diversidade de opiniões no âmbito doutrinário se refletiu no órgão julgador. Iniciado o julgamento em 12 de maio de 2005, a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, votou pelo não-conhecimento do recurso especial e foi acompanhada pelo Ministro Castro Filho. Pediu vista dos autos o Ministro Gomes de Barros (fl. 448, 3º vol.), que, na sessão do dia 20 de setembro de 2005, votou pelo conhecimento e provimento do recurso especial. Ainda uma vez o julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do Ministro Menezes Direito, que, na sessão do dia 17 de novembro de 2005, também votou pelo conhecimento e provimento do recurso especial (fl. 455, 3º vol.). À vista do empate, o processo foi reincluído na pauta da sessão do dia 15 de dezembro de 2005, na qual pedi vista dos autos (fl. 453, 3º vol.).

4. Incontroverso o fato, o exame da matéria exige uma definição prévia a respeito da norma jurídica que deve orientar o julgamento da causa.

O Professor Luiz Carlos de Azevedo traz a esse propósito uma valiosa contribuição, in verbis :

“Em matéria de fraude contra credores, para fins de fixação de prazo prescricional, tem sido aplicado o art. 178, § 9º, inciso V, combinado com a letra ‘b’: prescreve … em quatro anos … a ação de anular ou rescindir contratos, para a qual não se tenha estabelecido menor prazo, contado este … no de erro, dolo, simulação ou fraude, do dia em que se realizar o ato ou o contrato.

Mas, como já se expôs, embora as expressões constantes dos artigos 106 e 107 refiram-se à idéia de nulidade, a fraude contra credores não leva exatamente à anulação do negócio jurídico, mas conduz à ineficácia do ato, frente a estes mesmos credores, que não podem ser prejudicados pela prática daquele vício; busca-se, enfim, declaração de ineficácia do ato ilícito, porque isto basta.

Daí que mais se ajusta o prazo prescricional àquele das ações pessoais, em geral, ou seja, vinte anos, conforme disposto no art. 177 do Código Civil, pois desta forma estar-se-á acompanhando critério tradicional, cuja origem remonta a passado longínquo, mas nem por isto se afastou do atual direito.

E esta consideração encontra esteio no fato de que na ação correspondente para repelir a fraude não se procura anular ou rescindir o ato, mas declará-lo ineficaz, com todas as conseqüências que esta declaração produzirá; por conseqüência, não se aplica, no caso, a norma contida no artigo 178, § 9º, V, ‘b’, do Código Civil” (fl. 153, 1º vol.).

Do ponto de vista doutrinário, a conclusão é respeitável.

Até mesmo o Professor Humberto Theodoro Júnior, não obstante afirmando que o prazo na espécie é regido pelo art. 178, § 9º, inciso V, letra "b”, do Código Civil, reitera, no aludido parecer, o que já havia dito em obra doutrinária, isto é, que a ação pauliana tem por objeto a ineficácia do ato em face do credor, in verbis :

"Afirma-se, destarte, que o objetivo da ação pauliana é a declaração de ineficácia do ato tido como prejudicial ao

credor. Através dela não há propriamente a desconsideração do ato fraudulento, mas sim o reconhecimento de sua inoperância em face do credor prejudicado. Donde, segundo já afirmamos doutrinariamente, ser sua sede natural a das sentenças declaratórias.

Na ação pauliana, ‘o juiz, acertando os fatos da conjuntura em que se deu a alienação realizada pelo devedor insolvente, não cuida, de maneira alguma, de invalidar ou desfazer o ato jurídico, nem tampouco de anular seus naturais efeitos entre as partes contratantes. A sentença se preocupa simplesmente com o dano que o negócio acarretou, diretamente, para a garantia do credor demandante’. Assim, ‘reconhecendo que a garantia foi ofendida pelo efeito direto da venda fraudulenta, a sentença pauliana declara sua ineficácia relativa, mas o efeito típico próprio do ato de disposição do devedor não se desfaz entre as partes nem perante o credor’ (Theodoro Júnior, Fraude contra credores – natureza da sentença pauliana, Belo Horizonte, Del Rey, p. 201/202. É de se assinalar que existem autores, como Dinamarco, que consideram ter natureza constitutiva a sentença pauliana. Todavia, até mesmo para estes, a constitutividade resulta da sujeição dos bens à responsabilidade patrimonial – o que se dá a partir da sentença – não da desconstituição do negócio entre as partes originais, mesmo porque este não é o efeito próprio da pauliana” (fl. 65, 1º vol.).

Na mesma linha, e sem tomar partido na querela porque, no seu ponto de vista, “em nada interfere naquilo que diz com os pressupostos legalmente estabelecidos para que se tenha como presente a fraude contra credores, nem com o prazo de decadência a que se sujeita a ação” (fl. 329), o Professor Eduardo Ribeiro propõe uma visão realista do tema, in verbis :

“Constitui objeto de antiga divergência doutrinária, com os previsíveis reflexos jurisprudenciais, a questão pertinente a saber se o reconhecimento da fraude contra credores conduz à anulação do ato, como resulta, em princípio, da literalidade do disposto no artigo 106 do Código Civil, ou à ineficácia em relação à pretensão executória do credor que, em virtude da fraude, sofreu o dano, consistente na impossibilidade de encontrar bens do devedor, capazes de suportar o pagamento de seu crédito. Segundo esse entendimento, o ato não é anulado. O bem continua no patrimônio do adquirente, mas exposto a ser penhorado em execução contra o alienante.

A doutrina tradicional orienta-se no sentido de que a hipótese é mesmo de anulação, desconstituindo-se, pois, o ato tido como viciado. Liebman foi dos primeiros a insurgir-se contra tal entendimento, afirmando que a ação pauliana ‘restabelece sobre os bens alienados não a propriedade do alienante, mas a responsabilidade por suas dívidas, de maneira que possam ser abrangidos pela execução a ser feita’ (Processo de Execução – Saraiva – p. 84).

A polêmica continua e, embora se possa detectar forte tendência a ter-se como melhor a orientação que vê, no caso, apenas a ineficácia, corrente essa prestigiada por respeitadíssimos doutrinadores, o certo é que mesmo autores modernos continuam fiéis à opinião de que a letra do Código Civil não enseja tal interpretação (Leonardo Greco, O Processo de Execução, Renovar, 2001, v. II, p. 31/33). E a Súmula 195 do Superior Tribunal de Justiça refere-se a anulação” (fl. 329, 2º vol.).

Quer dizer, bem ou mal, a jurisprudência está afinada com o emprego do verbo anular em se tratando de negócios em fraude a credores e é iterativa no sentido de que o art. 178, § 9º, inc. V, letra “b”, do Código Civil se aplica às ações que os perseguem, a saber:

“Art. 178 – Prescreve:

§ 9º – Em quatro anos:

V – A ação de anular ou rescindir os contratos, para a qual se não tenha estabelecido menor prazo; contado este

b) – no de erro, dolo, simulação ou fraude, do dia em que se realizar o ato ou o contrato".

5. Pontes de Miranda criticou cedo a interpretação literal dessa norma, nestes termos:

“O legislador não prestou atenção a que as ações por erro, ou dolo, pertencem a figurantes do ato jurídico, pessoas que necessariamente o conheceram, razão para se contar o prazo desde a prática do ato jurídico. Quanto a atos jurídicos anuláveis por simulação ou por fraude contra credores, o terceiro pode não ter conhecido o vício do ato jurídico, por não ter conhecido o próprio ato jurídico. Ignoraria o vício e a existência da própria ação; seria absurdo que contra ele corresse o prazo prescricional sem que estivesse apto a propor ação. Donde três soluções possíveis: ou a) se entende que a letra do art. 178, § 9º, V, b), 3ª e 4ª partes, supõe eficácia contra o terceiro (e.g., registo) ou b) se admite que o terceiro, ainda depois de passar o prazo prescricional, tem a execução de simulação e a exceção pauliana; ou c) se admite que a data do ato jurídico, quanto ao terceiro, é a do registo e, ainda depois de prescrita a ação de anulação, tem o terceiro a exceção de simulação viciante ou a exceptio pauliana. A terceira solução é a verdadeira. No sistema jurídico brasileiro, o instrumento público tem eficácia erga omnes, de modo que se entende ter tido conhecimento do ato jurídico o terceiro, salvo se para tal conhecimento se precisava, como a respeito de imóveis, de registo especial; o instrumento particular somente tem efeitos em relação a terceiros depois de registrado (art. 135, 2ª parte)” – Tratado de Direito Privado, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1970, 3ª edição, Tomo VI, p. 383).

“O art. 178, § 9º, V, b), 3ª parte, fala de se contar o prazo desde a data em que se realizar o ato ou o contrato. Não nos adianta criticar, de lege ferenda, o texto da lei, por ter encambulhado as ações por erro, ou dolo, de que são titulares figurantes do ato jurídico, portanto pessoas que necessariamente o conheceram, e as ações de simulação ou fraude contra credores, cujos titulares são terceiros, que podem ignorar por muito tempo, ou sempre, o vício da simulação ou da fraude contra credores. O legislador fixou o prazo, a contar-se do dia em que se realiza o ato jurídico. Não podemos entender que o terceiro conheceu necessariamente nesse dia a simulação, ou a fraude contra credores. Se admitimos a sua ignorância, fazemos correr contra ele prazo de prescrição, o que de modo nenhum poderia ser justificado. Ou se entende que o prazo cabe do dia em que há publicidade do ato jurídico, ou se há de admitir que não proposta a ação dentro de quatro anos, a que se refere o art. 178, § 9º, V, b) 3ª e 4ª partes, resta ao terceiro a exceção” (op. cit., Tomo IV, 480/481).

As razões do recurso especial sustentam que essa interpretação pode ser aceita quanto aos negócios que precisam ser registrados para terem eficácia, v.g., o contrato de compra e venda. A cessão de direitos hereditários, todavia, produz todos os efeitos pela só realização do ato, e seu registro é inviável, seja porque não contenha a especificação dos bens, seja porque às vezes nem diga respeito a imóveis.

Do ponto de vista meramente lógico, o argumento impressiona. Mas, como disse Oliver Holmes, o Direito não é apenas lógica, é também experiência. Suposta que seja a inexistência, no caso, de fraude contra credores, um precedente do Superior Tribunal de Justiça que adote, à vista da base fáctica revelada nestes autos, a interpretação literal do art. 178, § 9º, inc. V, letra “b”, do Código Civil, abriria o caminho para a fraude no futuro, e a norma jurídica já não alcançaria a finalidade que a inspira.

A circunstância de que a cessão de direitos hereditários tenha resultado de escritura pública não irradia a publicidade especial própria dos registros do Ofício Imobiliário. Uma escritura pública pode ser realizada em qualquer tabelionato do país, não sendo razoável que se presuma o conhecimento de terceiros. Quem teria condições de pesquisar um negócio jurídico em todos os tabelionatos do país?

Por isso, mais apropriada é a solução da jurisprudência coligida por Yussef Said Cahali, a cuja orientação dá o apoio de sua autoridade, a saber:

“É certo que, na sua literalidade, dispõe o Código Civil, no art. 178, § 9º, inc. V, ‘b’, que prescreve em quatro anos a ação revocatória, contado esse prazo ‘do dia em que se realizar o ato ou o contrato’ fraudulento.

Essa literalidade do texto legal tem se prestado à afirmativa singela da doutrina e da jurisprudência, no sentido de que o prazo extintivo deve ser computado a partir da prática do ato fraudulento.

Mas a jurisprudência também admite que tal prazo deve ser contado a partir da data da transcrição do título no registro imobiliário, e não no dia da escritura.

Esse entendimento, que nos parece correto, sugere que se trate distintamente – conforme, aliás, o determina o sistema binário adotado pelo direito brasileiro – os atos de disposição que tenham por objeto coisa móvel ou tenham por objeto coisa imóvel.

Assim, se, na alienação de coisa móvel, o negócio jurídico é acompanhado geralmente da tradição do bem desde logo, em se tratando de alienação de coisa imóvel, o negócio jurídico só se completa com a tradição solene, que se representa na transcrição do título aquisitivo no registro imobiliário; só a partir de então o direito real se tem como adquirido, gerando o registro a presunção erga omnes de conhecimento do ato de disposição” (Fraude contra credores, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 3ª edição, 2002, p. 455/456).

Uma questão interessante, mas de certo modo impertinente à espécie, é a seguinte. Quid, se, na forma do art. 129 da Lei nº 6.015, de 1973, “para surtir efeitos em relação a terceiros”, a escritura pública de cessão de direitos hereditários for depositada no Registro de Títulos e Documentos ? Prevaleceria como termo inicial da decadência do direito de propor a ação pauliana a data desse depósito ou a do registro no Ofício Imobiliário da conferência dos bens ao capital social de J.A Agropecuária e Comercial Ltda. ? Fica a indagação, porque aqui a escritura pública de cessão de direitos hereditários não foi levada ao Registro de Títulos e Documentos. Só há, pois, um parâmetro: a data do registro no Ofício Imobiliário.

Voto, por isso, no sentido de não conhecer do recurso especial.