2 de março de 2007

Jurisprudência (Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 590-6/3, da Comarca de RIBEIRÃO PRETO, em que é apelante ANTONIO DORIAN REQUENA e apelado o 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS da mesma Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores CELSO LUIZ LIMONGI, Presidente do Tribunal de Justiça e CAIO EDUARDO CANGUÇU DE ALMEIDA, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 30 de novembro de 2006.

(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO
 

REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida – Recusa do registro do título – Ofensa aos princípios da legalidade e da especialidade – Sentença de procedência mantida – Recurso não provido.

1. Tratam os autos de dúvida suscitada pela Oficiala do 2º Registro de Imóveis da Comarca de Ribeirão Preto, julgada procedente pela decisão de fls.86/93 do Meritíssimo Juiz Corregedor Permanente, que manteve a recusa do ingresso do título apresentado, denominado “compromisso particular de cessão”, na matrícula nº 99.823.

Os motivos da recusa, adotados na decisão recorrida, foram, em síntese, o não atendimento ao artigo 225 da Lei 6015/73, que determina a descrição do imóvel objeto da venda, e a ausência de assinatura dos atuais representantes da empresa alienante e proprietária, cuja denominação atual é diversa daquela do contrato. A recusa se deu também em razão da necessidade de ser providenciada a escritura definitiva da venda, porque o preço foi integralmente pago e o imóvel é unidade autônoma de um condomínio devidamente instituído, situação diversa daquela descrita no título, correspondente à futura unidade autônoma do Condomínio Florença II, prometida à venda antes mesmo do registro da incorporação do empreendimento. O contrato foi celebrado sem a presença de testemunhas, portanto, em ofensa ao artigo 221 da Lei de Registros Públicos.

O recorrente sustenta que a incorporação do “Condomínio Residencial Villa Florença II” foi realizada quando a empresa ainda era denominada Maria Colafemia Empreendimentos Agropecuários Ltda., e que é a mesma pessoa jurídica que participou do aditamento do contrato. Apenas a denominação social foi posteriormente alterada, portanto, não há falar em ofensa ao princípio da continuidade. Acrescenta que pelo aditamento foi especificado o lote objeto da venda e que logo após houve a incorporação do condomínio, o que regularizou o negócio. Afirma que eventual irregularidade cometida na venda das unidades antes de regularizado o loteamento não pode prejudicá- lo, ao contrário, a proibição legal visa proteger o adquirente e a responsabilidade pela prática ilegal é dos vendedores. Sustenta que não houve ofensa ao princípio da especialidade, porque falta apenas indicar as confrontações do imóvel, o que está suprido pela apresentação da matrícula que o descreve perfeitamente.

Finaliza com o argumento de que a Lei nº 6766/79 nãoexige testemunhas nos contratos, nem o Código Civil vigente.

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso.

É o relatório.

2. A recusa foi correta e devidamente mantida pela decisão recorrida.

O título apresentado para registro, denominado “compromisso particular de cessão”, datado de 19 de maio de 1997 e posteriormente aditado no verso de uma cópia do original, autenticada, datado de 11 de maio de 1998, na realidade, retrata compromisso de compra e venda. Indica como promitente “Maria Colafêmia Empreendimentos Agropecuários Ltda” e assim descreve o terreno – “UR 40 com frente para a Alameda I com as medidas de 12m de frente por 25m de cada lado até os fundos do Villa Florença II.”

Antes do aditamento, a promitente era “Maria Colafemia De Paula Leão” e o objeto do compromisso era “a promessa de cessão de uma unidade a ser obtida em área situada em Ribeirão Preto no Distrito de Bonfim Paulista.”

Da análise da matrícula número 70155, verifica-se que a área maior, correspondente a uma gleba de terras, situada no Distrito de Bonfim Paulista, na qual está situado o imóvel objeto do compromisso, era de propriedade de “Maria Colafêmia De Paula Leão”, foi transmitida à “Maria Colafêmia Empreendimentos Agropecuários Ltda”, transformou-se em condomínio devidamente incorporado, e, em decorrência, surgiu, dentre outras, a unidade residencial autônoma número 40(“UR40”).

A matrícula foi encerrada, em razão da abertura de todas as matrículas para as unidades autônomas residenciais. A matrícula número 99823 refere-se à “UR 40” e, de acordo com os dados transportados da matrícula anterior, número 70155, assim se descreve a unidade autônoma residencial: “…situada na quadra A, com frente para a Alameda 03, possui uma área útil construída… com uma área privativa no terreno de 300,00 m2, dentro dos seguintes perímetros: mede 12,00 metros na frente e no fundo, por 25,00 metros de ambos os lados, da frente ao fundo, por 25 metros de ambos os lados, da frente aos fundos, confrontando de um lado a Unidade Residencial Autônoma nº UR03, de outro lado com a Unidade Residencial Autônoma nº UR05, e no fundo com a Rua Projetada, a qual corresponde à participação de 182,5344 m2, nas coisas de uso comum…”.

Da confrontação da matrícula da unidade residencial e do título apresentado, conforme acima descrito, verifica-se que não há a devida correspondência entre uma e outra, no que diz respeito à descrição do imóvel, o que ofende os princípios da especialidade e da legalidade.

O Oficial, ao receber um título para qualificação, deve proceder “o exame da legalidade do título e apreciação de formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e sua formalização instrumental”(Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª edição, editora Forense).

O princípio da legalidade consiste na aceitação para registro somente do título que estiver de acordo com a lei. A Lei 6015/73 consagra os princípios da especialidade e da continuidade.

A especialidade objetiva, no conceito de Afrânio de Carvalho, na obra já citada, significa que toda inscrição deve recair sobre um objeto precisamente individuado, e, em razão deste princípio, o artigo 176, § 1º, inciso II, item 3, letra b, da Lei de Registros Públicos, dispõe que são requisitos da matrícula, a identificação do imóvel, com indicação, no caso de imóveis urbanos, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver.

O artigo 225, “caput”, da mesma Lei, em conformidade com o dispositivo legal acima citado e também em observância ao princípio da especialidade, descreve o que deve constar de um título – indicação, com precisão, dos característicos, confrontações e as localizações dos imóveis etc, e, no § 1º, dispõe que as mesmas minúcias, com relação à caracterização do imóvel, devem constar dos instrumentos particulares apresentados em cartório para registro. O § 2º deste mesmo dispositivo legal diz que, para efeito de matrícula, consideram-se irregulares os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com o registro anterior.

A área descrita no título é precária e nem poderia corresponder à descrição da matrícula nº 99823, já que o aditamento é datado de 11 de maio de 1998 e o registro da incorporação e da instituição de condomínio, composto de 75 unidades autônomas residenciais perfeitamente descritas e caracterizadas, é datado de 25 de outubro de 1999, conforme consta da matrícula anterior, nº 70155 e registro número 3. Antes deste registro, havia apenas a descrição da área maior, de 39.170,65 metros quadrados e que foi objeto da incorporação.

É o que basta para impedir o acesso ao fólio real. As únicas coincidências existentes entre o título e a matrícula é o fato de mencionarem o mesmo número da unidade residencial autônoma e as mesmas medidas de frente, de fundo e das laterais e da frente aos fundos, o que é insuficiente. Vários são os julgados que, em casos análogos, assim decidiram:

“Não coincidindo as referências à área constantes dos registros anteriores com aquela do título, há impedimento absoluto do registro, como prevê o artigo 225, § 2º, da Lei 6.015/73”(Apelação Cível nº 3427-0, da Comarca de Itapecerica, j. 8 de julho de 1984, rel. Des. Bruno Affonso de André).

“A lei de registros públicos, em seu artigo 225(e também no artigo 176, parágrafo 1º, inciso II, número “3”) exige rígido controle da caracterização do imóvel, não podendo superá-la o argumento de que a riqueza de detalhes introduzida na escritura tornaria impossível confundir o imóvel em tela com outro.

É exatamente a introdução de novos elementos não constantes do assento que fere a regra básica da especialidade”(Apelação Cível nº 11.595-0/0, da Comarca de Guarulhos, j. 17 de setembro de 1990, rel. Des. Onei Raphael, parecer do então MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria Vito José Guglielmi).

“…cabe verificar se a descrição constante do título quadra com a do registro antecedente, se não, há maltrato de preceito do artigo 225, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973”(Apelação Cível nº 15.070-0/3, da Comarca de Santos, j. 8 de julho de 1992, rel. Des. Dínio de Santis Garcia).

Ainda, no mesmo sentido: Apelação Cível nº 19.176-0/6 – São José dos Campos; Apelação Cível nº 20.745-0/6 – Itu, ambas rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga; Apelação Cível nº 41.372-0/7 – Tupã, rel. Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição; Apelação Cível nº 69.375-0/5 – Araçatuba, rel. Des. Luís de Macedo; Apelação Cível nº 92.932-0/1 – São Joaquim da Barra, rel. Des. Luiz Tâmbara.

Ademais, houve indevida negociação de unidade condominial inexistente, antes de ser arquivada a documentação necessária, o que é vedado pelo artigo 32 da Lei 4591/64.

O recorrente argumenta que esta vedação visa proteger o adquirente, razão pela qual não deve ser penalizado, porque a responsabilidade pela negociação indevida é do incorporador.

Não há dúvida de que este dispositivo legal visa proteger o adquirente da unidade integrante do empreendimento, contudo, tal proteção tem a finalidade de fazer com que o incorporador concretize a incorporação, e, caso não o faça em determinado prazo, atualize a documentação, para demonstrar que as condições anteriores não foram alteradas e que o empreendimento continua com as condições necessárias e indispensáveis para ser levado adiante.

No caso em tela, o empreendimento foi concretizado, de modo que a proteção almejada pelo dispositivo legal foi alcançada, e, mesmo que assim não fosse, não serviria de argumento para justificar o acesso do título ao registro, que exige requisitos legais próprios e distintos, os quais não podem ser dispensados com base em dispositivo legal destinado a disciplinar questão diversa.

Quanto à ausência de testemunhas, e, de fato, testemunhas não há, já que todos os que assinaram o aditamento são interessados na negociação e não podem assim ser considerados, como tenta fazer crer o recorrente, cuida-se de mais uma ilegalidade, à vista da previsão contida no inciso II do artigo 221 da Lei de Registros Públicos, que traz o rol taxativo dos títulos admitidos para registro, o que exclui a aceitação de qualquer outro, e exige, no compromisso particular de compra e venda, a assinatura de duas testemunhas.

Esta lei, como o próprio nome já diz, é específica aos registros públicos, portanto, para fins de ingresso de um título no fólio real, é a que deve ser observada, de modo que não cabe confrontá-la, no caso, com os dispositivos legais de lei geral, como é o caso do Código Civil, nem tampouco com lei especial, referente ao parcelamento do solo urbano (nº 6766/79).

O recorrente tem razão somente quanto ao fato de não ter sido violado o princípio da continuidade.

Este princípio, consagrado no artigo 195 da mesma Lei, determina o imprescindível encadeamento entre assentos pertinentes a um dado imóvel e às pessoas nele interessadas. (Walter Ceneviva – Lei de Registros Públicos Comentada, 16ª edição, editora Saraiva).

Dispõe o mencionado artigo: “Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.”

O já mencionado Afrânio de Carvalho, na mesma obra, ao tratar o princípio da continuidade, diz que “O princípio da continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular.”

A averbação nº 5, feita na matrícula nº 70155, preserva a cadeia de titularidade exigida, na medida em que a razão social alterada é da mesma proprietária apontada no título, qual seja, “Maria Colafêmia Empreendimentos Agropecuários Ltda”, e o fato de ter havido a alteração dos sócios é irrelevante.

Contudo, à vista dos demais óbices corretamente apontados, não é mesmo possível o acesso do título no registro imobiliário.

Diante do exposto, nego provimento ao recurso.

(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.O.E. de 31.01.2007)